Povo Enawenê parou de pescar, como era de costume, e compra quase 2 mil kg de peixes por mês na cidade. Ritual sagrado para etnia também foi comprometido. Especialista diz que previu tragédia em 2006.
Os impactos causados aos indígenas da etnia Enawenê-Nawê pela construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PHCs), nos rios da Bacia do Juruena, na região noroeste de Mato Grosso, são devastadores. Os peixes acabaram no Rio Iquê nos últimos 10 anos e a comunidade se viu obrigada a comprar o alimento de criadores na Juina mais próxima, que é Juína, a 180 km de distância, e gastam em torno de R$ 40 mil por mês.
A etnia tem o peixe como base da alimentação e na pesca um dos principais rituais sagrados do povo, o Yaokawa, onde os homens ficam dois meses fora de casa pescando e, na volta, são recebidos pelas famílias com festa.
São 10 usinas implantadas no rio, sem a devida consulta aos povos indígenas da região, e, atualmente, oito delas estão em operação. As barragens impedem que os peixes subam o leito do rio para se reproduzirem, a chamada piracema. Com o passar dos anos, os peixes se tornaram cada vez mais escassos, até desaparecem quase por completo.
O fim dos peixes no Rio Iquê, que é um afluente do Juruena, já era uma tragédia anunciada, conforme o biólogo Francisco de Arruda Machado, que é especialista em peixes e doutor em ecologia.
Em 2006, antes da implantação das usinas, ele foi contratado para fazer um estudo sobre os impactos causados pelas empresas e apontou que, da forma proposta, isso iria acontecer. Mas, segundo Machado, a análise foi ignorada.
Por semana, os indígenas gastam R$ 10 mil para comprar peixes, em Juína – cidade a 757 km de Cuiabá -, enquanto, se o rio não tivesse sido contaminado e os peixes acabado, poderiam pescar.
Holikiari Enawenê, que é membro da Associação Enawenê-Nawê, explica que a comunidade de aproximadamente 1.500 pessoas consome cerca de 400 kg de peixe por semana. Como não tem geladeira na aldeia, eles assam os peixes de uma vez e armazenam para consumir ao longo dos dias.
São comprados aproximadamente 1.900 kg de peixe por mês, com o dinheiro que a comunidade recebe das usinas, como parte de um acordo provisório feito em 2012, para a compensação pelos danos da construção da obra e com doações.
Os peixes adquiridos pelos indígenas são criados em tanques. Devido ao alto consumo, com o passar do tempo, eles podem sofrer problemas de saúde. Os peixes de cativeiro possuem mais gordura que os criados no rio.
Perda cultural
A perda não é só de alimento na Terra Indígena Enawenê-Nawê, mas de costumes e de cultura. Com o passar dos tempos, os moradores da comunidade vão deixando para trás o hábito de pescar, e de ir em busca da própria comida.
“Depois que a usina foi construída, os peixes diminuíram por causa do assoreamento do rio. A água foi poluída e não tem mais peixes e, por isso, temos que comprar na cidade”, afirmou Holikiari.
Os peixes também são assados em cerimônias e rituais, que, para a crença dos indígenas, são considerados meio de sobrevivência.
A perda cultural com a extinção dos peixes no Rio Iquê é inestimável.
O presidente da Associação, Daliyamasê Enawenê, explica que a falta de peixes compromete o Ritual Yaokawa, que é sagrado para o povo. Nesse ato, uma barreira é construída artesanalmente com cascas de árvore pelos indígenas para capturar peixes.
O ritual conta com a participação somente de homens, que passam dois meses na floresta. Antes da ida, as mulheres e crianças vão até a beira do rio para se despedir dos maridos e dos filhos. Depois dos dois anos de idade, os meninos já podem acompanhar os pais.
Os participantes saem com a missão de conseguir os peixes para saciar a fome dos espíritos. Quem fica na aldeia, cuida das roças, das plantações de mandioca, e esperam o retorno do grupo com uma cerimônia.
“Nós somos os responsáveis pelo ritual do espírito. Igual um empregado para a gente. Você contrata a pessoa, ele vai trabalhar para você. O espírito vai cobrar. Nós trabalhamos para o espírito”, conta o Daliyamasê sobre a crença do seu povo.
O cacique Kolarenê Enawenê conta que antigamente era só pôr o cesto no rio para pegar peixes. Hoje, a realidade é bem diferente. “Acabou o peixe. Não tem mais como pescar”, disse.
Tragédia anunciada
O relatório apresentado à época pelo biólogo Francisco Machado diz que “os barramentos (para o acúmulo de água) causam impactos irreversíveis às migrações de peixes, drasticamente àquelas reprodutivas, pois impedem diversas fases desse processo”.
“Quando apresentei o meu estudo, eles discordaram e queriam modificá-lo e eu não aceitei, porque eu tinha feito um trabalho com embasamento técnico, com conhecimento de causa”, contou.
De acordo com o relatório, as alterações ambientais causadas pela instalação de hidrelétricas incluem a perda e modificação de habitats, a diminuição da oferta de alimento para algumas espécies e a consequente perda de espécies, extrapolando os limites de uma Hidrelétrica.
Os indígenas Enawenê Nawê acreditam que nasceram de entidades espirituais com a missão de cuidar dos rios e pescar. “Como aconteceu tudo isso, alguns estão achando que não estão mais sendo eficientes para pescar e cuidar dos rios, de acordo com o que os espíritos determinaram para eles, e suicidam. O índice de suicídio é alto”, afirmou o biólogo, que acompanha os efeitos causados pelas usinas, que, segundo ele, de pequenas têm o nome, porque geram muita energia e provocam danos enormes ao meio ambiente.
O especialista explica que as florestas são degradadas com a instalação desses empreendimentos e prejudicam a sobrevivência de outras espécies, como das abelhas. “Os Enawenê Nawê têm o costume de beber água com mel e, com os danos às florestas, as abelhas também estão sumindo”, explicou.
A água que passa pelo reservatório das usinas perde a qualidade devido à decomposição da vegetação atingida pela água represada. “Quando alaga, invade a vegetação, e a digestão dessa matéria orgânica torna a água impura, causando doenças nos indígenas”, disse o ecólogo.
A geração de gases de efeito estufa causada pela decomposição das árvores que deveriam ser retiradas antes da invasão da água represada também é preocupante, como explica Nelson Flausino Junior, que é biólogo e doutor em zoologia. “O metano é altamente poluente. Em 20 anos, é 80 vezes mais poluente que outros gases de efeito estufa, causando o desequilíbrio climático. Também existe a contaminação com mercúrio. Tem muito mercúrio na água e, com a decomposição da vegetação, aumenta a concentração e se torna prejudicial à saúde”, apontou.
Para minimizar os efeitos negativos das construções à comunidade e ao meio ambiente, foram implantados sistemas de transposição dos peixes. Geralmente, essas estruturas consistem em uma escada que possibilitam a subida e a descida dos peixes, para a reprodução. No entanto, na Terra Enawenê-Nawê, segundo os indígenas, esse sistema não funcionou.
Batalha judicial
O acordo feito com as usinas, que estabeleceu o pagamento de R$ 20 mil por mês à comunidade, não cobre de forma alguma os prejuízos causados aos indígenas, conforme a advogada Cássia Lourenço, que representa a comunidade.
“O valor que eles recebem não é suficiente sequer para comprar os peixes que consomem hoje, imagina para arcar com os prejuízos causados pela castração cultural devido ao fim da atividade pesqueira. A pesca faz parte da identidade desse povo. São pescadores mergulhadores por natureza”, afirma.
“As hidrelétricas afrontam a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre povos indígenas e tribais quando interferem na cultura e no modo de vida desse povo, além do que os indígenas não dispõem de recursos suficientes para adquirir pescado para toda a população e complementam a demanda com doações”, explica a advogada.
Esse acordo vem sendo discutido judicialmente. As empresas já foram notificadas e uma audiência deve ser marcada nos próximos dias. O processo tramita na 8ª Vara Federal de Mato Grosso.
Uma perícia antropológica para avaliar os danos imateriais deve ser feita.
As Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs de Ilha Comprida, Parecis, Rondon, Sapezal, Segredo, Divisa, Telegráfica e Cidezal são de responsabilidade das usinas Telegráfica Energia S.A., Campos de Júlio Energia S.A., Parecis Energia S.A., Sapezal Energia S.A. e Rondon Energia S.A..
Um estudo da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e das universidades federais do Pará (UFPA) e de Tocantins (UFT), publicado na revista Neotropical Ichthyology, no ano passado, aponta que a operação de usinas hidrelétricas está relacionada à morte de toneladas de peixes nos últimos 10 anos em todo o país.
Segundo o levantamento, da década de 1970 até agora, houve uma diminuição de mais de 80% das espécies de peixes de água doce no mundo.
Em uma audiência na Justiça Federal, em 2012, o coordenador de Gestão Ambiental dos empreendimentos, Frederico Guilherme Moura Müller, que foi responsável por todos os estudos de impacto causado pelas usinas, disse que os peixes, praticamente, não seriam afetados. “O impacto é de baixa magnitude e não vai interferir diretamente na vida dos índios”, declarou.
Müller foi contratado pelo Grupo Juruena, que é proprietária das PCHs, para coordenar todas as análises técnicas e antropológicas para a construção dessas usinas.
Segundo o ex-coordenador, foi feito um estudo antropológico complementar a pedido da Fundação Nacional do Índio (Funai) para verificar os impactos aos indígenas, mas alegou que o povo Enawenê Nawê já tinha sofrido intervenção dos brancos com a chegada do agronegócio na região. “O impacto já ocorreu, com as estradas, com o agronegócio que está lá. A usina não vai aumentar esse impacto antrópico”, disse, ao argumentar que todos os programas de monitoramento para proteger o rio foram adotados para evitar prejuízos.
Ele relatou que os indígenas desconfiavam que seriam prejudicados com a instalação das usinas. “Eu tive dezenas de reuniões com eles (…) Eles têm essa desconfiança e tenho certeza que essa desconfiança vai acabar”. E, na avaliação dele, a comunidade era contrária à instalação das usinas era por falta de conhecimento e influência de outras pessoas.
Assessoria – Pollyana Araújo